Por Verônica Mambrini
Consultor, professor, filósofo, educador, palestrante, escritor, ex-monge. Mario Sergio Cortellatem muitas facetas. Ele é graduado em Filosofia, mestre e doutor em Educação pela PUC-SP, além de professor-titular da pós-graduação em Educação na mesma universidade. Autor de diversos livros, comentarista na Rádio CBN, ele ainda apresenta a série Diálogos impertinentesna rede Sesc-Senac de televisão. Com tantos papéis a desempenhar, Cortella consegue olhar para dentro e buscar os valores que adotou. E nos ensina: a vida em sociedade exige traquejo. Nem sempre é possível ser totalmente espontâneo e, muitas vezes, precisamos nos submeter a determinadas regras sociais para sobreviver a certos ambientes ou, simplesmente, para manter bons relacionamentos.
De acordo com o filósofo e educador, é tudo questão de manter coerência entre valores e objetivos. Se um emprego demanda adotar posturas com as quais intimamente não concordamos, cabe a nós olhar para dentro e avaliar se é aceitável ou não mantê-las. “Toda mentira gera sofrimento, todo fingimento gera desgaste de energia. Em toda pessoa que emula outra personalidade, esse sofrimento fica muito nítido e agudo. Fica claro que há uma distorção de equilíbrio. Se pessoas psiquiatricamente saudáveis ficam desequilibradas, é um aviso”, alerta o pensador. É esse indicador interno que nos mostra o limite da máscara social: identificar se estamos fazendo o que desejamos ou se estamos agindo apenas para agradar os outros ajuda a escolher a trilha mais adequada.
Isso significa que, sim, é possível lidar com situações em que estamos nos desagradando. “Em certos momentos, é obrigatório. Gentileza pressupõe escolher, às vezes, o que não nos agrada por inteiro”, diz Cortella. Mas se desagradar o tempo todo, entretanto, faz mal à saúde. No outro extremo está o super-honesto, aquele que faz mal à saúde dos outros. “Não dá para ser franco o tempo inteiro. Não pode ser um exercício cotidiano, isso rompe a convivência gentil”, diz. Franqueza só é boa quando é solicitada. O fato é que seja lá qual a postura que adotamos, ela sempre dirá muito sobre o que somos. E é preciso estar em paz com essa escolha. “A persona que você cria para lidar com uma situação também é você. Ser cínico ou hipócrita é uma escolha.”
Diante disso, é preciso escolher nossas batalhas. Vale a pena estragar o clima em uma reunião familiar rebatendo duramente um comentário racista? E azedar a boa convivência no escritório entrando em debates de política que podem levar a discussões e brigas? “Diferenciar aceitação e compreensão é algo decisivo na vida”, explica Cortella. “Compreender o machismo ou o racismo não quer dizer que eu os aceite. Pode ser que eu aceite a convivência com um reacionário em nome da democracia, ou aceite a convivência com alguém que seja contrário à religião que eu pratico em nome da liberdade religiosa.”
PERDAS E GANHOS
Nem sempre será possível aceitar os valores do outro, principalmente quando eles entram em choque com os nossos, e quando nos é cobrado um engajamento, um “vestir a camisa”. Cada geração tem seus próprios conflitos. Um jovem da geração Y, em pleno desenvolvimento da carreira, tende a estar muito mais focado em encontrar realização em um trabalho que transforme o mundo e esteja alinhado com seus valores pessoais do que no salário no fim do mês. “Não existe escolha sem abdicação. Não tem decisão sem perda. Escolha não significa ter tudo, é decidir o que se vai deixar de lado”, lembra o professor-filósofo. Logo, é possível ter uma vida e uma carreira alinhadas com verdades interiores, mas as recompensas financeiras ou os frutos dessas escolhas serão diferentes. “Como só tenho uma vida pessoal, tudo que está na minha vida, seja trabalho, lazer, religião ou política, é objeto de escolha. Não há como não fazer escolhas. Sartre já dizia: ‘o ser humano é um ser condenado a ser livre.’”
Até certo ponto, os filtros sociais nos ajudam, mas quando chegamos ao limite, não há nada de errado em aceitar determinadas perdas, é questão de se manter íntegro com os próprios valores. “Se existe um grande conflito, não há como conciliar. Quem aceita, vira cúmplice. Se me deparo com situações que não concordo, costumo me retirar. Isso pode gerar perdas, mas não existe escolha sem perda. Não existe escolha que gere tranquilidade, sempre gera perturbação no ambiente”, explica o filósofo.
Não há receita de bolo: apenas olhando para dentro e refletindo diariamente sobre o que fazemos e por que fazemos será possível encontrar quem somos de verdade. “Ninguém nasce pronto, completo. Muita gente prefere viver de maneira turbulenta para não ter de meditar, de modo a justificar as escolhas, quase como se alguém obrigasse você a viver assim. Mas, no fundo, são sempre escolhas pessoais. As estruturas orientam nossas escolhas, mas não as determinam. Não é porque o casamento está em crise no Ocidente que o meu tem de estar”, compara.
É possível viver uma vida mais autêntica, com menos filtros, e mais espontaneidade. Há ambientes que podem ser hostis a essa escolha, mas cabe a cada um calcular perdas e ganhos. Demonstrar sentimentos e até se permitir chorar pode não ser bem-visto no ambiente corporativo, por exemplo, mas quem não compactua com o comportamento padrão do mundo do trabalho pode escolher outros caminhos. O importante é que a escolha reflita uma decisão pensada. “Refletir por que se faz as coisas é sinal de inteligência. A vida automática é pequena”, finaliza o filósofo.